Rose Nogueira é jornalista. Em 1969 trabalhava no Grupo Folha. E pertencia à Ação Libertadora Nacional (ALN), “organização terrorista” (segundo a ditadura e o Grupo Folha) que lutava contra a ditadura instalada no Brasil. Guarde essas duas informações: Rose trabalhava no Grupo Folha e pertencia à ALN.
Em dezembro de 1969, Rose ainda amamentava seu filho, que havia nascido em setembro, quando foi presa. Detalhes de seu período na prisão e das torturas que lhe foram impostas estão descritos aqui. Ela os resumiu em um depoimento para uma novela do SBT, em fase de produção:
“Eu tinha apenas 23 anos, recém-parida e fui espancada de muitas formas, fiquei com o corpo todo marcado, destruída por dentro. Meu torturador era tarado, me judiava e humilhava muito… Passei mais de um mês sem tomar banho, fedia por causa do sangramento comum após o parto e também devido ao leite, que cheirava azedo. Por causa disso, me deram uma injeção para secar meu leite. Não tive o direito de amamentar meu filho… Pior do que isso, eles usaram um bebê para me coagir. Por duas vezes, levaram meu filho ao DOPs e ameaçaram queimá-lo vivo caso não os ajudasse a localizar meus companheiros, mas eu não sabia onde eles estavam…”
Rose não morreu, como tantos de seus companheiros. Esteve presa e dividiu a cela com a atual presidenta do Brasil, Dilma Rousseff. Ao sair da cadeia, descobriu que fora demitida. Pesquisou e descobriu o motivo alegado pelo Grupo Folha:
Ao buscar, agora, nos arquivos da Folha de S. Paulo a minha ficha funcional, descubro que, em 9 de dezembro de 1969, quando estava presa no DEOPS, incomunicável, “abandonei” meu emprego de repórter do jornal. Escrito à mão, no alto: ABANDONO. E uma observação oficial: Dispensada de acordo com o artigo 482 – letra ‘i’ da CLT – abandono de emprego”. Por que essa data, 9 de dezembro? Ela coincide exatamente com esse período mais negro, já que eles me “esqueceram” por um mês na cela.
Como é que eu poderia abandonar o emprego, mesmo que quisesse? Todos sabiam que eu estava lá, a alguns quarteirões, no prédio vermelho da praça General Osório. Isso era e continua sendo ilegal em relação às leis trabalhistas e a qualquer outra lei, mesmo na ditadura dos decretos secretos. Além do mais, nesse período, caso estivesse trabalhando, eu estaria em licença-maternidade.
Guarde agora essa outra informação: o Grupo Folha a demitiu por “abandono de emprego”. Junte-a às outras duas: ela trabalhava no grupo Folha e pertencia à ALN.
Agora, para comemorar seus 90 anos, o Grupo Folha resolve fazer um tímido mea culpa, dividido por ele mesmo em 9 atos. O Ato 4 chama-se “O Papel na Ditadura”. Reproduzo na íntegra:
A Folha apoiou o golpe militar de 1964, como praticamente toda a grande imprensa brasileira. Não participou da conspiração contra o presidente João Goulart, como fez o "Estado", mas apoiou editorialmente a ditadura, limitando-se a veicular críticas raras e pontuais.
Confrontado por manifestações de rua e pela deflagração de guerrilhas urbanas, o regime endureceu ainda mais em dezembro de 1968, com a decretação do AI-5. O jornal submeteu-se à censura, acatando as proibições, ao contrário do que fizeram o "Estado", a revista "Veja" e o carioca "Jornal do Brasil", que não aceitaram a imposição e enfrentaram a censura prévia, denunciando com artifícios editoriais a ação dos censores.
As tensões características dos chamados "anos de chumbo" marcaram esta fase do Grupo Folha. A partir de 1969, a "Folha da Tarde" alinhou-se ao esquema de repressão à luta armada, publicando manchetes que exaltavam as operações militares.
A entrega da Redação da "Folha da Tarde" a jornalistas entusiasmados com a linha dura militar (vários deles eram policiais) foi uma reação da empresa à atuação clandestina, na Redação, de militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional), de Carlos Marighella, um dos 'terroristas' mais procurados do país, morto em São Paulo no final de 1969.
Em 1971, a ALN incendiou três veículos do jornal e ameaçou assassinar seus proprietários. Os atentados seriam uma reação ao apoio da "Folha da Tarde" à repressão contra a luta armada.
Segundo relato depois divulgado por militantes presos na época, caminhonetes de entrega do jornal teriam sido usados por agentes da repressão, para acompanhar sob disfarce a movimentação de guerrilheiros. A direção da Folha sempre negou ter conhecimento do uso de seus carros para tais fins.
Outros blogs já comentaram esse assunto. Mas o que me interessa é o quarto parágrafo, especialmente o que destaco em negrito:
A entrega da Redação da "Folha da Tarde" a jornalistas entusiasmados com a linha dura militar (vários deles eram policiais) foi uma reação da empresa à atuação clandestina, na Redação, de militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional), de Carlos Marighella, um dos 'terroristas' mais procurados do país, morto em São Paulo no final de 1969.
Policiais contratados e ALN em atuação clandestina na Redação. A ligação é óbvia demais: os policiais não foram contratados para escrever mas para descobrir quem eram os “terroristas infiltrados”.
Rose Nogueira era um deles. Provavelmente foi descoberta pelos policiais contratados pelo Grupo Folha. Em seguida, presa, barbaramente torturada. E depois demitida pelo mesmo Grupo que a mandou prender por abandono de emprego. Como se não soubesse de nada.
O crime perfeito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário